Valdir Sarubbi – a força de uma ausência

Não é tarefa simples escrever sobre Valdir Sarubbi; pois tanto sua pessoa como sua obra (ambas homenageadas com esta exposição no décimo aniversário de sua morte) não são afeitas à superficialidades e rotulagens. Ademais, ambas – pessoa e obra – se confundem em mim; em muitos de nós, que fomos seus alunos, seus amigos, seus escolhidos e que o amamos e fomos por ele amados. Acima de tudo, Sarubbi possuía uma profunda capacidade de amar: amava generosamente, com profundo respeito pela individualidade de cada aluno ou amigo, permitindo o florescimento de cada relacionamento com a mesma sensibilidade e esmero que percebemos em suas obras plásticas. Sua morte precoce (ele não concordaria com esta expressão, consideraria uma contradição em termos) inaugurou uma ausência fundamental na vida dos seus entes mais próximos e mais queridos – e também na história da arte no Brasil.

Eu conheci Valdir Sarubbi em 1980, inicialmente como aluno, depois como amigo, em seu “Atelier Livre”. O Brasil começava a respirar os ares mais livres do fim da ditadura militar e, pouco a pouco, com o advento da democracia, uma vida cultural e intelectual mais articulada e institucionalmente organizada foi se restabelecendo no país. Nas artes visuais, as estratégias de resistência e experiências conceituais de artistas como Cildo Meireles, Antônio Manuel, Barrio e outros deram lugar a euforia e gestualidade da chamada Geração 80. Como tende a acontecer em países ainda em formação, desprovidos de uma tradição filosófica forte e, ainda por cima, sujeitos à regimes totalitários, tanto as tendências artísticas dos anos 1970 como as dos anos 1980 tinham algo de “movimento”, de dogmático – uma agenda exterior ao trabalho plástico em si. Isso fica evidente, por exemplo, no depoimento de Brígida Baltar sobre o início de sua carreira: “Lá [no Parque Lage] encontrei uma pré-cena Como vai você geração 80? e os estímulos eram para quanto mais gesto e cor melhor. Eu sofri bastante, tentando me identificar nesse caminho, ‘soltar’ as formas, ainda usando lápis de cor, mas os desenhos eram de uma sutileza fora de lugar. Eu ia tentando exaustivamente, chegar aquela gestualidade toda – como se fosse uma direção certa e única a se seguir”.[1]

Nada mais distante da pessoa e da obra de Valdir Sarubbi do que tais movimentos totalizantes, impositivos ou militantes (por mais que possamos estar de acordo com os princípios e valores defendidos por tal militância). Extremamente consciente do que é ser um artista e como se desenvolve uma linguagem artística sensível, o próprio Sarubbi deixa isso claríssimo em várias ocasiões: “O importante para mim não é o engajamento do artista dentro de tendências ou movimentos específicos, mas uma visão aberta de quem olha a obra de arte para apreciá-la naquilo que ela apresenta de sensível, seja sobre que forma for. O importante para mim é que a arte que o artista faz seja um reflexo dele mesmo e não uma dublagem de tendências artísticas orquestradas pela mídia ou uma simples ilustração de teorias artísticas contemporâneas. Muito importante é o processo criativo do artista, que se desenvolve na medida em que ele cresce como pessoa humana. Sem queimar etapas, sem pressa para atingir o sucesso. Este crescimento se reflete no amadurecimento de sua obra.” [2]

Passado já uma década desde sua morte, constata-se que o Brasil ainda não foi capaz de merecer um artista do porte de Valdir Sarubbi. Se a memória de sua pessoa continua pulsando em cada um de nós – seus amigos – na forma de gestos adquiridos, lembranças e afetos (são inúmeros, por exemplo, os objetos que ainda mantenho da época do Atelier Livre, e que me remetem diretamente à presença do Valdir e suas lições salutares), a ausência de seu nome em compêndios e retrospectivas de arte que têm sido promovidas nos últimos anos no Brasil, já consistentemente democrático e economicamente pujante, é um eloquente lembrete do quanto ainda temos que amadurecer enquanto nação.

Ainda não fomos capazes de assimilar uma obra desgarrada do mainstream e capaz de levar a linguagem plástica a elevados níveis de complexidade e sofisticação. Como poucas, a obra de Valdir Sarubbi, jamais se afastando do rigor de uma sensibilidade refinada e intuitiva, constitui um pensamento. Há uma qualidade investigativa, e quase obsessiva, em séries como Meditação Labiríntica e Antiguos Duenõs de las Flechas, como se houvesse uma procura, um intrincado mapeamento de memórias e afetos (que não buscam ser resolvidos, mas apenas revelados, descobertos, elaborados) – não por acaso o rio, com suas profundezas, sombras e sinuosidades, aparece como uma de suas mais fortes metáforas. É quase sintomático que a memória tenha sido um dos temas mais recorrentes da obra de Valdir Sarubbi. Suas últimas telas, cheias de leveza e luz, atestam sua fé no espírito humano – espírito que ele tanto reconheceu e cultivou em si mesmo e em todos aqueles que tiveram o privilégio de compartilhar sua vida.

Notas:
1. Baltar, Brígida. Passagem Secreta (org. Márcio Doctors). Rio de Janeiro: Funarte/Circuito, 2010.
2. Bittar, Rosana. Sarubbi. Belém: Estacon, 2002.

Renato Rezende